Quando o medicamento ASMQ foi lançado em 2008, pelo Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a ciência brasileira celebrou mais uma conquista em termos de tecnologia de fármacos. O medicamento é resultado de mais de 20 anos de pesquisas conduzidos pela ONG Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi) e pelo Farmanguinhos-Fiocruz.

O investimento no ASMQ foi feito por um consórcio europeu que disponilizou € 7,8 milhões, aproximadamente R$ 47 milhões. União Europeia, Reino Unido, Espanha, França e Holanda fazem parte dos investidores. Sergio Sosa-Estani acredita que “o modelo colaborativo de desenvolvimento pode inspirar soluções para outras doenças como a dengue”.
Sosa-Estani é médico-cirurgião e pós-doutor pela Tulane University, Nova Orleans, Estados Unidos. É um reconhecido pesquisador da medicina e se tornou, recentemente, o novo diretor-executivo para a América Latina da ONG DNDi (Drugs for Neglected Diseases initiative). Uma organização de pesquisa sem fins lucrativos que desenvolve tratamentos para pacientes negligenciados. Como citado acima, foi a ONG que conduziu o desenvolvimento do ASMQ.
Após a aprovação pelas agências reguladoras federais, em 2009, ele foi incorporado ao Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária (PNPCM) e disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Desde então, o ASMQ é considerado um dos tratamentos mais eficientes contra a malária. Por razões diversas, a fabricação do medicamento foi interrompida em 2021, 13 anos após ter tratado e ajudado a curar milhares de indígenas, principalmente crianças.

O remédio é denominado ASMQ por ser um acrônimo que representa a combinação de artesunato (AS) e mefloquina (MQ). Esta combinação é utilizada como tratamento e profilaxia contra a malária, especialmente a malária causada pelo Plasmodium falciparum. Não é uma vacina, mas sim uma combinação terapêutica usada no tratamento da malária. O ASMQ é usado principalmente para tratar infecções de malária já estabelecidas e é especialmente útil em regiões onde há resistência aos medicamentos tradicionais, como os povos originários. A combinação de artesunato e mefloquina é eficaz tanto no tratamento de casos agudos de malária quanto na prevenção de recidivas.
A interrupção foi causada, de acordo com o governo da época, por uma combinação de fatores econômicos e logísticos, incluindo altos custos de fabricação e problemas na cadeia de suprimentos exacerbados pela pandemia de Covid-19. Além disso, desafios regulatórios e administrativos, como mudanças nas regulamentações sanitárias e reestruturações dentro de Farmanguinhos, contribuíram para a pausa na produção do medicamento.

Fatores técnicos e científicos também desempenharam um papel importante, como a necessidade de desenvolver novas formulações pediátricas e realizar estudos clínicos adicionais para garantir a eficácia e segurança contínua do ASMQ. A retomada da produção, em 2023 para adultos e em 2024 para crianças, foi celebrada com mais entusiasmo como se o mesmo medicamento estivesse sido lançado.
Em 2023, a fabricação foi retomada parcialmente, com 254,4 mil unidades destinadas a maiores de 12 anos, atendendo à demanda para adolescentes e adultos. Em 2024, a Farmanguinhos reiniciou a produção do ASMQ para menores de 12 anos, um grupo frequentemente negligenciado, ampliando o acesso ao tratamento para crianças e ajudando a reduzir a mortalidade infantil causada pela malária.
Essa retomada reforça o PNPCM e demonstra a capacidade do SUS e das instituições associadas em adaptar-se às necessidades emergentes de saúde pública. No entanto, desafios permanecem, como garantir uma logística eficiente para a distribuição nas áreas mais afetadas, monitorar a eficácia do ASMQ para evitar a resistência do Plasmodium falciparum, e assegurar a continuidade da produção para a estabilidade do tratamento e prevenção da malária. À época, os pesquisadores celebraram o medicamento pela inovação e porque é concebido sob os princípios da ciência aberta, sem patentes e sem fins lucrativos, pronto para se tornar um líder no tratamento contra a malária no Brasil, principalmente a infantil.
Após a autorização para reiniciar a produção do fármaco, o ASMQ começou a ser distribuído desde junho de 2024 para crianças, especialmente na Terra Indígena Ianomâmi, que recentemente enfrentou uma crise humanitária sem precedentes devido à intensificação das invasões de garimpeiros ilegais. Esses invasores causaram destruição ambiental, desmatamento, contaminação dos rios por mercúrio, aumento da violência e disseminação de doenças como malária e Covid-19. Entre 2020 e 2021, a situação se agravou com o desmatamento alarmante e uma severa crise de desnutrição entre os Ianomâmi, devido à escassez de alimentos e à falta de acesso a serviços básicos de saúde.

Em resposta à gravidade da crise, o Governo Federal declarou, em janeiro de 2023, uma emergência de saúde pública no território Ianomâmi, situado principalmente no estado de Roraima. Essa medida foi motivada pela combinação de desnutrição grave, surtos de malária, contaminação ambiental e a pressão contínua do garimpo ilegal. A crise destacou a falta de proteção efetiva das terras indígenas e a necessidade urgente de políticas públicas de saúde e segurança para garantir a preservação e a sobrevivência dos Ianomâmi.
DO INÍCIO À FASE CRÍTICA

A malária é causada pelo protozoário Plasmodium, um gênero de parasitas protozoários responsável por causar a malária em humanos e outros animais, sendo transmitido através da picada de mosquitos Anopheles infectados. O mosquito é conhecido, principalmente na Região Norte, como carapanã ou muriçoca. A malária é uma doença complexa com várias fases críticas, cada uma delas apresentando diferentes desafios e riscos para o paciente. As fases mais críticas incluem:
1. A fase de incubação é o período entre a picada do mosquito infectado e o aparecimento dos primeiros sintomas. Pode durar de 7 a 30 dias, dependendo da espécie do parasita. Durante esta fase, o parasita se multiplica no fígado antes de entrar na corrente sanguínea. A detecção precoce é difícil porque os sintomas ainda não aparecem.
2. Já a fase eritrocítica começa quando os parasitas saem do fígado e invadem os glóbulos vermelhos. É a fase em que aparecem os sintomas típicos da malária, como febre, calafrios, sudorese e dores de cabeça. Esta é a fase mais crítica em termos de manifestação de sintomas. A rápida multiplicação dos parasitas nos glóbulos vermelhos pode levar à anemia severa, icterícia e complicações mais graves se não tratada adequadamente.
3. Na fase de complicações severas, já consideradas como a malária grave, se não for tratada de forma eficaz, pode evoluir para formas graves, incluindo malária cerebral, insuficiência renal, síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) e falência múltipla de órgãos. Esta fase é extremamente perigosa e requer tratamento imediato e intensivo. Malária cerebral, por exemplo, pode levar a convulsões, coma e morte.
Os sinais de alerta mais comuns durante a fase de complicações severas, envolvem alterações neurológicas como confusão, convulsões e perda de consciência. Outros sinais críticos é quando o paciente começa a ter insuficiência respiratória, anemia severa, fraqueza extrema e palidez até chegar à falência renal.
INTERVENÇÃO, TRATAMENTO E PREVENÇÃO
O diagnóstico precisa ser rápido, através de testes rápidos de diagnóstico (TRDs) e microscopia são essenciais para a identificação precoce do parasita. Em relação ao tratamento imediato, medicamentos antimaláricos devem ser administrados o mais rápido possível. A combinação de terapias, como ACTs Terapias Combinadas à base de Artemisinina (ACTs), é frequentemente utilizada. Em casos de malária grave, pode ser necessário suporte intensivo, incluindo transfusões de sangue, ventilação mecânica e diálise.
Há algumas medidas de controle do vetor que podem prevenir o contágio da doença, como o uso de mosquiteiros tratados com inseticida, pulverização residual interna e uso de repelentes. No contexto da malária, a profilaxia medicamentosa envolve o uso de drogas antimaláricas por indivíduos que viajam para áreas endêmicas. Por fim, além do ASQM, a vacinação também é fundamental contra a doença. A vacina RTS,S/AS0, conhecida como Mosquirix é uma ferramenta preventiva importante, especialmente para crianças em regiões com alta transmissão.
André Siqueira, doutor em Medicina Tropical pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI-Fiocruz), explicou que nos anos 1950, a cloroquina era a principal arma contra a malária. Contudo, a partir dos anos 1960, algumas espécies de Plasmodium desenvolveram resistência, exigindo novos tratamentos como os derivados da artemisinina, que ressurgiram nos anos 1990. Embora potente, a artemisinina exige tratamentos prolongados, dificultando a adesão em áreas de baixa educação e problemas socioeconômicos.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), no início dos anos 2000, alertou sobre a necessidade de novas soluções para combater a malária e a crescente resistência dos protozoários. Assim, surgiu o projeto de desenvolver o AQSM, garantindo recuperação com menos doses e evitando a resistência do parasita.
Outros fármacos, como os quininos, foram introduzidos, mas também enfrentaram a resistência dos patógenos. A descoberta da artemisinina rendeu à farmacologista chinesa Tu Youyou o Prêmio Nobel de Medicina de 2015. Embora potente, a artemisinina tem uma meia-vida curta, necessitando de tratamentos prolongados, dificultando a adesão em áreas com baixos níveis educacionais e problemas socioeconômicos.
ASMQ EM DETALHES
Os pesquisadores chegaram à fórmula do artesunato + mefloquina (ASMQ), que combina moléculas conhecidas de forma a garantir a recuperação com o menor número de doses possível, facilitando o tratamento e evitando a resistência do protozoário. Acompanhe, abaixo, o passo a passo do ASQM:
Componentes da Combinação
- Artesunato (AS)
- Origem: Derivado da artemisinina, uma substância extraída da planta Artemisia annua (absinto doce).
- Fórmula Molecular: C19H28O8
- Modo de Ação: O artesunato atua rapidamente, matando os parasitas da malária no sangue. Ele é particularmente eficaz nas fases iniciais do ciclo do parasita.
- Vantagens: Rápida redução da carga parasitária e rápida melhoria dos sintomas clínicos.
- Mefloquina (MQ)
- Origem: Um antimalárico sintético desenvolvido nos anos 1970.
- Fórmula Molecular: C17H16F6N2O
- Modo de Ação: A mefloquina mata os parasitas ao interferir na sua capacidade de se multiplicar dentro dos glóbulos vermelhos.
- Vantagens: Eficaz contra cepas de Plasmodium que são resistentes a outros medicamentos, como a cloroquina.
- Benefícios da Combinação ASMQ
- Maior Eficácia: A combinação de artesunato e mefloquina é mais eficaz do que usar qualquer um dos medicamentos isoladamente.
- Redução da Resistência: Usar dois medicamentos com modos de ação diferentes dificulta para os parasitas desenvolverem resistência.
- Tratamento Abrangente: Combina a ação rápida do artesunato com a ação prolongada da mefloquina, proporcionando um tratamento completo e eficaz.
- Uso na Prática Clínica
- Indicação: Tratamento de infecções por Plasmodium falciparum, a forma mais perigosa de malária, especialmente em áreas onde há resistência a outros antimaláricos.
- Administração: Os medicamentos são geralmente administrados juntos, seguindo um regime específico prescrito por um profissional de saúde.
O ASMQ está disponível em versões para adultos e crianças, adaptadas para condições tropicais, mostrando-se seguro e eficaz nos testes clínicos. Segundo Sergio Sosa-Estani, médico e pós-doutor pela Tulane University, diretor Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDi). na América Latina, o tratamento consiste em um comprimido diário por três dias, sem necessidade de ajuste de dose conforme o peso do paciente. Crianças pequenas podem ter o comprimido amassado e diluído em água.
MALÁRIA, “DOENÇA ESQUECIDA”
A situação das crianças indígenas é ainda mais preocupante devido à escassez de tratamentos específicos para elas, tanto pela infraestrutura quanto logística. Há lugares na Amazônia onde o único transporte são embarcações. Estudos indicam que os menores de 18 anos são frequentemente negligenciados no desenvolvimento e na disponibilidade de tratamentos para doenças negligenciadas, como malária, dengue, esquistossomose e micoses profundas. Uma pesquisa de 2019 revelou que apenas 17% dos testes clínicos para novos tratamentos incluíam pacientes pediátricos.
A DNDi aponta que, dos 47 medicamentos recomendados pela OMS para doenças negligenciadas, apenas sete são formulados para crianças. Para enfrentar essa desigualdade, a versão pediátrica do ASMQ foi desenvolvida e começou a ser distribuída para tratar casos graves de malária causados pelo Plasmodium falciparum. De acordo com a FioCruz, essa espécie é responsável por cerca de 25% dos casos de malária na América Latina e é a principal causadora de formas severas da doença no Brasil.
A introdução do ASMQ no Brasil envolveu discussões significativas. O diretor do Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz (Farmanguinhos-Fiocruz), o mestre em Química Orgânica Jorge Souza Mendonça, relembra que o desenvolvimento e a aprovação do medicamento pela Anvisa foram concluídos em 2008. Em 2009, o medicamento foi incorporado ao Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária. No entanto, havia receios entre infectologistas sobre a possibilidade de surgimento de cepas resistentes do parasita devido ao novo tratamento“, afirmou o diretor.

Estudos adicionais e experiências de outros países, especialmente do Sudeste Asiático, demonstraram que a combinação de artesunato e mefloquina permanece eficaz a longo prazo, sem sinais de resistência. Em 2019, especialistas e autoridades de saúde no Brasil decidiram que o medicamento deveria ser amplamente adotado como tratamento de primeira linha.
No entanto, a pandemia de Covid-19 em 2020 atrasou a distribuição do ASMQ para crianças, que só foi normalizada em 2023. Em junho deste ano, os primeiros lotes da versão pediátrica começaram a ser distribuídos. Cerca de 360 mil unidades foram enviadas para o território Ianomâmi em resposta à emergência de saúde pública. Além disso, 259 mil comprimidos – metade para adultos e metade na versão pediátrica – foram destinados às secretarias de Saúde dos estados amazônicos, incluindo Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso e Maranhão.
Dados do Ministério da Saúde revelam que, em 2022 Brasil registrou cerca de 130 mil casos de malária e 62 mortes associadas à doença. Alarmantemente, 99% das infecções ocorreram na região amazônica. Entre 2013 e 2022, mais de 1,5 milhão de brasileiros contraíram malária, sendo que 29% desses casos envolveram crianças de até 12 anos. com uma redução de 8,1% em relação a 2021. A meta era não exceder 113 mil casos autóctones, mas foram registrados quase 127 mil casos locais. Em termos de mortalidade, o país registrou 50 óbitos em 2022, uma leve redução em comparação com os 58 óbitos de 2021.
Além dos desafios já mencionados, as crianças são particularmente afetadas por “doenças esquecidas”, além da malária, dengue, esquistossomose e micoses profundas. Estudos mostram que essa população é frequentemente ignorada no desenvolvimento e disponibilidade de tratamentos.
AMAPÁ TEM NÚMEROS FAVORÁVEIS
Particularmente, no Amapá, em 2022, houve o registro de 2.798 casos de malária, mostrando uma redução significativa em comparação com anos anteriores. No primeiro trimestre de 2024, Macapá, a capital, teve 41 casos, uma redução de 48% em relação aos 79 casos no mesmo período de 2023. As medidas de combate, como a distribuição de mosquiteiros impregnados de inseticida, contribuíram para essa redução significativa na incidência da doença no estado.

No cronograma de distribuição do ASMQ, o Amapá, assim como os outros estados amazônicos, de acordo com a demanda, recebeu uma parcela dos 259 mil comprimidos. Considerando uma distribuição equitativa entre os nove estados da região Norte, isso resulta em aproximadamente 28.778 comprimidos para cada estado, incluindo o Amapá. No entanto, a distribuição específica entre as tribos indígenas não foi detalhada nos dados disponíveis.
No Amapá, há seis Terras Indígenas (TI), compostas pelos Waiãpi, Galibi Marworno, Palikur, Karipuna, Galibi do Oiapoque e Tiriyó. No total das seis terras, há 8.500 indígenas que estão constantemente sendo acometidos por doenças como a malária. A distribuição exata dos comprimidos entre essas tribos depende das necessidades de cada comunidade e das estratégias de saúde pública implementadas na região.