O açaí, da palmeira ao caroço, é aproveitado. É uma das bases alimentares amazônicas mais ricas, quicá do mundo. Não à toa, a gente esbarra com gringos destrambelhados e boquiabertos com a exuberância que a Amazônia proporciona. Institutos, ONG’s e universidades de outros países estudam a região amazônica com frequência, assim como ao nosso açaí. Em 2013, um punhado de ribeirinhos teve a ideia de fazer diferente, mostrar ao mundo que um fruto gitinho possuía muito mais a apresentar – e alimentar, embelezar, dentre outros benefícios que o açaí possui.
Com a criação do Protocolo Comunitário Beira Amazonas, em 2019, houve uma fusão, por assim dizer, com a Amazonbai, fundada em 2017, agregando mais associados. Após a pandemia, o grupo realizou um planejamento estratégico em 2021, com duração de 10 anos, sobre a estruturação que iriam ter que idealizar para organizar a infraestrutura socioeconômica sobre os espaços de trabalho e o processo de instalação da agroindústria; e bioquímica sobre o produto que iriam estudar.
Em 2022, em dezembro, a Agroindústria Amazonbai estava fundada, além da abertura dos escritórios administrativos na Vila Progresso (Bailique), onde funciona a matriz, e o da Beira Amazonas. Foi então que a Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas do Bailique e Beira Amazonas, Amazonbai, decidiu causar uma pequena revolução a partir do belo arquipélago do Bailique. Os estudos para transformar o açaí em derivados benéficos para a saúde, além da preservação e conservação do bioma amazônico, remontam a 20, 30, talvez até mais anos, através de pesquisadores do mundo todo, encantados por um fruto miúdo, que tinge os lábios com uma cor arroxeada, mas que é potente pelas particularidades químico-biológicas. Indústria farmacêutica, alimentícia, cosmética. E assim o açaí sai da vastidão amazônica e ganha o mundo. Inclusive em pó.
No distrito do Bailique, o mais distante de Macapá, a 145 km, ou aproximadas 12 horas de viagem, é onde começa a sistematização, a viagem que o pequeno fruto faz até ser beneficiado e transformado em um derivado e ser encaminhado para a apreciação de privilegiados. Neste caso, a exportação do açaí em pó está sendo produzido pela primeira vez pela Cooperativa Amazonbai.
DO AÇAÍ AO PÓ
Até chegar ao processo químico final, que é a liofilização, o açaí, lá no Bailique, é colhido e selecionado pelos extrativistas. Depois, através da lavagem e do despolpamento, o fruto é separado do caroço ficando só a polpa. Logo em seguida, a polpa do fruto é congelada a -40º para preservar os nutrientes.
Aqui nesta fase, já na fábrica da Amazonbai, começa o processo químico através da sublimação primária, a fase inicial da liofilização, onde a água congelada no material é removida por sublimação direta do estado sólido para o gasoso. O material congelado é mantido sob vácuo, e um leve aquecimento é aplicado para fornecer a energia necessária para a sublimação, removendo cerca de 95% da água. Já a sublimação secundária remove a água residual que está quimicamente ligada ao material. Nesta fase, a temperatura é aumentada ainda sob vácuo para quebrar essas ligações e remover a água restante, garantindo que o produto final esteja minimamente desidratado, porém resultando em uma umidade extremamente baixa.
O açaí ganhou um novo propósito ao ser processado em pó, ampliando seu mercado e valorizando o trabalho das comunidades extrativistas. É a primeira vez que a Amazonbai recebe um pedido de compra tão vultoso. A exportação para os Estados Unidos de 10 toneladas deste produto ocorrerá ainda em junho e o valor da venda está definido em R$ 2,4 milhões.
O presidente da cooperativa Amazombai, Amiraldo Picanço, que é mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Amapá (Unifap), falou da mudança de realidade que a venda do açaí em pó fará na vida dos cooperados. “Esperamos gerar um valor de até R$ 2,4 milhões por mês para os ribeirinhos. Isso vai melhorar significativamente o padrão de vida das famílias envolvidas”, pontuou completando que “além disso, a sustentabilidade e a inovação tecnológica que adotamos servirão como modelo para outras comunidades”.
O açaí em pó pode ter diversas finalidades cosméticas, alimentícias, farmacêuticas, entre outros benefícios. Na culinária, é usado para fazer smoothies, sobremesas e receitas de panificação. Incorporado em suplementos nutricionais devido às suas propriedades antioxidantes e energéticas, o produto é altamente nutritivo.
Para a trilionária indústria de cosméticos, dependendo de como for beneficiado pela industria, o açaí em pó, além de ser rico em antioxidantes, contém altos níveis de antocianinas e flavonoides, que combatem os radicais livres, ajudando a prevenir o envelhecimento precoce da pele e mantendo-a saudável. O açaí também é uma fonte rica de ácidos graxos essenciais, como o ômega-3, ômega-6 e ômega-9, que ajudam a manter a barreira lipídica da pele, prevenindo a perda de água e garantindo a hidratação.
Além de conter uma variedade de vitaminas, como as vitaminas A, C e E, que são conhecidas por suas propriedades hidratantes e regeneradoras, o açaí é um fonte de minerais que contribuem para a saúde geral da pele. Há compostos presentes no açaí que possuem propriedades anti-inflamatórias, que ajudam a acalmar a pele e reduzir irritações, tornando-o adequado para produtos destinados a peles sensíveis ou propensas a inflamações.
Por fim, o açaí em pó pode ajudar a reter a umidade na pele, proporcionando uma hidratação duradoura, o que é essencial para manter a pele macia e suave. Devido a todos esses benefícios citados, o açaí em pó é frequentemente incluído em fórmulas de cremes, loções e máscaras faciais para proporcionar hidratação, rejuvenescimento e proteção à pele.
A Amazonbai possui uma área significativa de açaizeiros plantados, gerando não apenas a produção de frutos, mas também de palmito. O palmito de açaí é valorizado por seus benefícios nutricionais, incluindo baixo teor calórico e alto teor de fibras, além de ser uma excelente fonte de minerais como ferro e zinco.
Para extrativistas como Simone Calandrini, a produção de açaí “representa uma fonte de sustento e uma melhoria na qualidade de vida”. Simone, que coleta açaí desde a adolescência, relata a evolução de sua habilidade na colheita e a satisfação com a produção crescente. “Esse trabalho não apenas sustenta famílias, mas também preserva a tradição e promove o desenvolvimento sustentável na região”, completou. Ou seja, desde o manejo comunitário até o produto.
A Amazonbai já fabrica produtos derivados do açaí desde a inauguração da sua fábrica agroindustrial, em dezembro de 2021. Além disso, o açaí em pó recebeu o reconhecido selo Forest Stewardship Council (FSC) – Conselho de Manejo Florestal – que é uma organização internacional sem fins lucrativos que promove o manejo responsável das florestas ao redor do mundo.
A certificação FSC é amplamente reconhecida e respeitada globalmente por sua contribuição significativa à promoção do manejo florestal responsável. Empresas certificadas pelo FSC, como a Amazonbai, mostram um compromisso com a sustentabilidade ambiental e a responsabilidade social.
“A certificação FSC é vital para nós, pois garante que estamos manejando nossas florestas de maneira sustentável e responsável. Ela nos ajuda a acessar mercados que valorizam a sustentabilidade e nos diferencia de outros produtores. É um reconhecimento do nosso compromisso com a conservação ambiental e a sustentabilidade social”, completou Amiraldo.
BAILIQUE E BEIRA AMAZONAS: GÊNESE
As comunidades ribeirinhas do Bailique e da Beira Amazonas são um exemplo inegável de como o desenvolvimento sustentável pode transformar realidades. Composta por pescadores, agricultores e extrativistas, essas comunidades têm no açaí e no peixe suas maiores fontes de renda.
Historicamente, a comercialização do açaí sempre envolveu a figura dos atravessadores. Esses intermediários se deslocam até as comunidades para comprar o fruto por um preço estabelecido pelo mercado em Macapá.
Embora a participação deles resulte em uma distribuição desigual dos lucros, eles desempenham um papel crucial no escoamento do produto, especialmente nas comunidades mais remotas, onde os custos e os riscos de transporte são elevados.
Foi nesse contexto que, em 2017, surgiu a Amazonbai, a Cooperativa dos Produtores Extrativistas de Açaí. Iniciada com 37 sócios originários da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique (ACTB), a cooperativa tinha como missão principal potencializar a comercialização do açaí e melhorar as condições de negociação para os produtores.
A ACTB já havia conquistado, em 2016, a certificação de manejo florestal não madeireiro, o Conselho de Manejo Florestal (FSC®), para um grupo de 95 manejadores, o que abriu caminho para a formação da cooperativa.
Em 2019, a articulação do Protocolo Comunitário do Beira Amazonas trouxe mais 43 produtores para a cooperativa, expandindo a representatividade da Amazonbai para os dois territórios. Com a união dessas comunidades, a cooperativa passou a buscar não apenas melhores preços, mas também a agregação de valor ao produto e a promoção de práticas sustentáveis.
O Protocolo Beira Amazonas é um instrumento de gestão territorial e uso sustentável dos recursos naturais, desenvolvido por comunidades tradicionais da região Beira Amazonas no Amapá. É um exemplo de como as comunidades tradicionais podem se organizar para gerenciar de forma sustentável seus recursos naturais, ao mesmo tempo em que promovem o desenvolvimento econômico e a conservação ambiental.
AÇAÍ, FONTE ALIMENTÍCIA E ACADÊMICA
Em Belém, no Laboratório de Tecnologia Supercrítica (Labtecs), do Espaço Inovação do Parque de Ciência e Tecnologia (PCT), da Universidade Federal do Pará (UFPA), os técnicos que lá pesquisam o açaí precisam desafiar a própria química para transformá-lo em produtos jamais imaginados. Que tal um azeite de açaí à mesa? Ou, um insumo para a indústria farmacêutica? Ou, o açaí liofilizado, em pó, como a Amazonbai no Amapá que já está a exportar para os Estados Unidos?
A engenheira química Letícia Siqueira, mestra em Engenharia Química pela Universidade Federal do Pará (UFPA), e doutoranda em Engenharia de Recursos Naturais da Amazônia, estuda a biodiversidade do açaí para desenvolver novos produtos.
Letícia afirmou que as pesquisas que vem realizando são com matéria-prima vegetal, absolutamente significativo para a bioeconomia. A doutoranda ainda sustenta que o objetivo é descobrir e desenvolver produtos que ainda não estão no mercado, produtos que as pessoas nem sabiam que existiam.
“Utilizamos tecnologia verde, 100% orgânica e natural. Não há restrições para as indústrias. As pessoas estão acostumadas a consumir o açaí apenas em sua forma pura ou como sorvete, mas ele possui um potencial enorme para outros usos, por isso a pesquisa é tão essencial”, ressaltou a pesquisadora.
Já o Dr. Raimundo Braz Filho, doutor em Química pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), foi pesquisador da Embrapa na região que compreende a Amazônia Oriental, neste caso na capital do Pará, Belém. O Prof. Dr. é laureado com o título de Doutor Honoris Causa pela própria UFRRJ e reconhecido como mestre da química de produtos naturais.
Antes de se aposentar, o Dr. Braz Filho estudava a variabilidade genética do açaí e suas implicações para a produtividade e qualidade do fruto. Suas pesquisas incluem a melhoria das técnicas de cultivo e manejo sustentável do açaí, bem como a análise de suas propriedades nutricionais e funcionais.
Alexander George Schauss é CEO e pesquisador do AIBMR Life Sciences, nasceu na Alemanha mas é mundialmente conhecido por seus estudos epidemiológicos, nutrição e bioestatística. E por ter um gosto literal pelo açaí. Schauss é doutor em Psicologia pela Universidade da Costa da Califórnia, com graduação e mestrado em Ciências da Saúde pela Universidade do Novo México.
Em 2006, o Dr. Schauss foi coautor de um artigo científico que se baseou no açaí liofilizado, ou seja, 28 anos antes da Amazonbai começar o processo de exportar o açaí em pó para os EUA. O presidente da Amazonbai, Amiraldo Picanço, bem que poderia lhe presentear com uma embalagem…
O artigo “Composição Fitoquímica e Nutritiva da Baga de Palmeira Amazônica Liofilizada, Euterpe oleracea Mart. (Açaí)”, destaca a alta capacidade antioxidante do açaí em pó devido às antocianinas e flavonoides.
A história do açaí em pó é um exemplo inspirador de como a inovação, aliada à sustentabilidade e ao trabalho comunitário, pode abrir novos mercados e melhorar vidas. O futuro do açaí em pó na indústria cosmética, alimentícia e farmacêutica é promissor, refletindo o potencial vasto e ainda pouco explorado da Amazônia.
“ONDE MUITOS NÃO TÊM NADA…”
Para encerrar essa jornada sobre o açaí, é preciso celebrar sua essência com os versos de Nilson Chaves em “Sabor Açaí”:
“E tua fruta vai rolando
Para os nossos alguidares
Tu te entregas ao sacrifício
Fruta santa, fruta mártir
Tens o dom de seres muito
Onde muitos não têm nada…”