Técnicos do governo Bolsonaro reprovaram a PEC das Praias ; “risco de grilagem de terras públicas”

Em uma das avaliações feitas por técnicos do Ministério da Economia do então governo, concluiu que fazer a maior transferência de patrimônio público da história, seria temerário.
Foto: Reuters
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A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 03/2022, conhecida como “PEC das Praias”, continua rendendo pautas alvoraçadas nos bastidores do Congresso Nacional e da sociedade, principalmente agora que veio à tona que o Ministério da Economia do então governo Bolsonaro aconselhou que a PEC não fosse adiante.

Uma manifestação técnica da Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU), vinculada ao Ministério da Economia, alertou que a aprovação da PEC poderia resultar na “maior transferência de patrimônio público para o privado que se tem notícia na história”.

Senador Flávio foi aconselhado, durante o mandato do seu pai, a não prosseguir com a PEC. O parlamentar já admitiu que fará ajustes na PEC para tentar amenizar as críticas e captar mais apoios. Foto: Adriano Machado.

A proposta original, apresentada em julho de 2011 pelos então deputados Arnaldo Jordy (PPS-PA), José Chaves (PTB-PE) e Zoinho (PR-RJ), só recebeu parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara em maio de 2015, pelo relator Alceu Moreira (MDB-RS). Após a aprovação na CCJ, a PEC seguiu para o plenário da Câmara dos Deputados.

A votação da PEC das Praias na Câmara dos Deputados ocorreu em 22 de fevereiro de 2022. Nesse dia, a proposta foi aprovada em primeiro turno por 377 votos a 93, com uma abstenção. Horas depois, a PEC foi votada em segundo turno, recebendo 389 votos favoráveis e 91 contrários, sem abstenções.

Números avassaladores que no Senado podem não significar o mesmo sucesso da Câmara que Flávio deseja. Vez ou outra, como em qualquer PEC, mas em especial esta, surgem variáveis contrárias à proposta que frustram as pretensões do senador Flávio Bolsonaro PL-RJ. Após a aprovação avassaladora favorável à PEC, na Câmara, o parlamentar assumiu a relatoria da PEC no Senado no dia 30 de fevereiro e deste então vem articulando e formulando para ter os apoios suficientes e fazer com que a PEC das Praias nade, nade e chegue à praia.

Em 2023, o senador emitiu dois pareceres favoráveis à PEC, que não chegaram a ser votados. Esses pareceres detalhavam suas análises e justificativas para apoiar a proposta de emenda constitucional. No entanto, ambos não foram submetidos à votação no Senado devido à controvérsia e repercussão negativa em torno da PEC, além de uma série de críticas e questionamentos sobre os possíveis impactos da privatização de áreas litorâneas.

O parecer 56/2023 enfatizava a necessidade de modernização e flexibilização na gestão dos terrenos de marinha. Ele argumenta que a transferência dessas áreas para o setor privado pode impulsionar investimentos, gerar empregos e promover o desenvolvimento econômico das regiões costeiras. O parecer destaca a importância de manter a acessibilidade das praias ao público, conforme previsto na Constituição.

Já no parecer 57/2023, Flávio Bolsonaro reforça os argumentos apresentados anteriormente, acrescentando que a PEC pode reduzir a burocracia e facilitar a regularização fundiária. Ele também menciona que a proposta pode atrair novos empreendimentos turísticos e comerciais, beneficiando diretamente a economia local e nacional. Assim como no parecer anterior, ele reafirma o compromisso de garantir que as praias permaneçam acessíveis ao público em geral.

A pressão de diversos setores, incluindo técnicos da Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU) e membros do próprio governo Bolsonaro à época, levantou preocupações consideráveis sobre a segurança jurídica, a possibilidade de grilagem de terras e os impactos socioeconômicos.

Diante disso, o senador Flávio optou por não levar os pareceres à votação, buscando ajustar e revisar o texto para atender às críticas e assegurar que a proposta não resultasse em prejuízos ao patrimônio público e à acessibilidade das praias.

O tema ganhou um fôlego a mais após audiência pública realizada em 27 de maio, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, que causou ainda mais narrativas sobre a matéria legislativa. Inquirido, Flávio afirmou que o governo de seu pai nunca trabalhou contra a PEC e que sua relatoria foi uma “indicação” do próprio Jair Bolsonaro. Contudo, críticas anteriores de membros do governo, como o então secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, Diogo Mac Cord, indicam o contrário. Mac Cord havia alertado que a transferência forçada de imóveis poderia causar prejuízos à União.

Secretário especial da SPU do, durante o governo Bolsonaro, Diogo Mac Cord foi um dos que causaram mais divergências a respeito da PEC das Praias. “A União seria bastante prejudicada com transferências forçadas de imóveis”, avaliou.

A PEC autoriza a União a realizar a venda de terrenos de marinha localizados em áreas urbanas para estados, municípios ou proprietários privados. Contudo, a medida carece de clareza sobre as penalidades para casos de inadimplência, criando margem para disputas legais e potenciais calotes.

Adicionalmente, a proposta permite que áreas sejam cedidas a ocupantes que não estão registrados no cadastro da SPU, aumentando o risco de ocupação ilegal e apropriação indevida de terras públicas.

Estatísticas da SPU indicam que os terrenos de marinha em áreas urbanas representam cerca de 80% da carteira imobiliária da União, com valor patrimonial aproximado de R$ 157 bilhões. Contudo, apenas 20% desses terrenos estão devidamente demarcados. A aprovação da PEC poderia interromper processos de demarcação, transferindo para o domínio privado imóveis cujo valor estimado ultrapassa R$ 1 trilhão.

Durante o governo Bolsonaro, houve um entusiasmo por mudanças nas regras de ocupação do litoral, especialmente em áreas como Angra dos Reis (RJ), visando a criação de uma “Cancún brasileira”. A votação da PEC na Câmara ocorreu no mesmo mês em que se liberaram os jogos de azar, atividade que poderia ser beneficiada pela privatização de áreas costeiras.

O impacto socioeconômico da PEC é significativo. De um lado, poderia fomentar o desenvolvimento econômico de áreas costeiras, atraindo investimentos e impulsionando o turismo e outras atividades econômicas. De outro, a proposta pode beneficiar conglomerados financeiros e multinacionais em detrimento de pequenos contribuintes, potencialmente resultando em uma renúncia de até R$ 3,2 trilhões em ativos públicos.

Além disso, o setor privado expressa preocupações. Ana Paula Gadotti, gerente técnica da Associação de Terminais Portuários Privados (ATP), argumentou que a compra obrigatória dos imóveis não é do interesse de muitas empresas, gerando insegurança financeira e impacto nos negócios.

Praia de Boa Viagem, , em Recife, uma das mais visitadas do Brasil. Foto: Luiza Sá/iStock

Empresas como Vale e Arcelor Mittal, que possuem terminais em grandes áreas de marinha, poderiam ser impactadas negativamente pela PEC, por exemplo.

Após a repercussão negativa, Flávio Bolsonaro indicou que pode alterar pontos da PEC para esclarecer que as praias não serão privatizadas. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, prometeu um “amplo debate” sobre o assunto, ressaltando a necessidade de cautela.

A PEC das Praias levanta questões complexas sobre a gestão do patrimônio público, o desenvolvimento econômico e os interesses privados. Seu impacto socioeconômico depende de como serão resolvidas as lacunas e ambiguidades do texto, bem como do equilíbrio entre desenvolvimento e preservação do patrimônio nacional.

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