A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 03/2022, apresentada pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que pretende a privatização das praias brasileiras, está gerando um intenso debate na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. A PEC propõe a alteração do regime jurídico dos terrenos de Marinha, permitindo que essas áreas possam ser vendidas a particulares, uma mudança que pode ter impactos profundos no meio ambiente e na sociedade.
DETALHES DA PEC
A PEC do senador Bolsonaro pretende alterar o artigo 20 da Constituição Federal, que estabelece que as praias marítimas e os terrenos de Marinha são bens da União. Os terrenos de Marinha são faixas de terra situadas ao longo da costa, rios e lagos que sofrem influência das marés, estendendo-se até 33 metros a partir da linha de preamar média de 1831.
A linha da preamar-média significa a média da maré alta em determinado período. Já a linha da preamar-média de 1831 é a média da maré alta apurada em 1831. Atualmente, esses terrenos não podem ser vendidos, mas apenas cedidos em regime de aforamento ou ocupação, o que garante o uso público dessas áreas.
O senador Flávio Bolsonaro argumenta que “a privatização permitirá uma melhor gestão e desenvolvimento dessas áreas, promovendo investimentos privados que podem trazer benefícios econômicos e sociais”. Ele defende que a medida reduzirá a burocracia e os custos de manutenção dessas áreas para o Estado. O senador argumenta ainda que “a PEC visa regularizar a situação de milhares de imóveis em áreas de marinha, oferecendo segurança jurídica a proprietários que já ocupam essas terras há anos”.
Bolsonaro destaca também que atualmente existem 521 mil propriedades cadastradas nessas áreas e a mudança proposta seria a “maior reforma agrária da história do Brasil”. Ele acredita que a privatização desses terrenos de marinha poderá resolver questões de insegurança jurídica e fomentar o desenvolvimento urbano, especialmente em cidades como São Luís (MA) e Florianópolis (SC).
HÁ LEGITIMIDADE JURÍDICA?
A análise da legitimidade jurídica da PEC 03/2022 requer uma compreensão detalhada das leis e princípios constitucionais brasileiros, especialmente aqueles que tratam dos bens públicos, do meio ambiente e dos direitos coletivos.
A juricidade da matéria legislativa é um dos pontos mais controversos do debate. Especialistas em Direito Constitucional apontam que a proposta contraria princípios fundamentais da Constituição, que garante o acesso público e livre às praias e ao litoral. A privatização pode ser vista como uma violação do direito coletivo ao uso dessas áreas, um direito amplamente reconhecido, inclusive na legislação nacional.
Sobre a inalienabilidade dos bens públicos, a doutrina jurídica brasileira, assim como decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), sustentam que os bens públicos, especialmente aqueles de uso comum do povo, são inalienáveis, salvo mediante autorização legislativa específica que respeite os princípios constitucionais.
A respeito do direito de acesso ao Litoral, profusamente reconhecido, dita que qualquer medida que possa restringir esse acesso pode ser considerada inconstitucional. A privatização de praias pode violar este direito, ao limitar o acesso público a essas áreas.
Acerca da Constitucionalidade, alterar a natureza jurídica dos terrenos de Marinha, transformando-os de bens públicos de uso comum em propriedade privada, pode ser visto como uma violação direta da Constituição, que protege esses bens como inalienáveis e de uso comum do povo.
TEM MAIS JURIDIQUÊS
Velejando através da Constituição Federal até o Artigo 20, ele estabelece que as praias marítimas e os terrenos de Marinha são bens da União. A privatização desses terrenos, portanto, implicaria uma alteração significativa no regime jurídico dos bens públicos, que são tradicionalmente inalienáveis e de uso comum do povo.
“Art. 20. São bens da União: VII – os terrenos de marinha e seus acrescidos; X – as ilhas oceânicas e as costeiras, que contenham sede de Municípios, exceto as áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II.”
Ainda nas ondas amenas da constitucionalidade o Artigo 225 garante o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, impondo ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
A Constituição também estabelece o princípio da função social da propriedade (art. 5º, XXIII), o que significa que a propriedade deve atender a sua função social, que inclui o respeito ao meio ambiente e o bem-estar da coletividade.
PEC x LEGISLAÇÃO AMBIENTAL
A PEC 03/2022 enfrenta diversos obstáculos legais no âmbito da legislação ambiental brasileira. Qualquer tentativa de privatizar terrenos de Marinha deve considerar cuidadosamente as leis e princípios destinados a proteger o meio ambiente e garantir o uso sustentável e equitativo desses recursos.
A Lei nº 7.661/1988, que versa sobre o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC) impõe diretrizes para a utilização racional dos recursos da zona costeira, visando a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. O PNGC ainda prevê a preservação de ecossistemas costeiros como manguezais, restingas e outros ambientes sensíveis, que podem ser afetados pela privatização dos terrenos de Marinha.
O Código Florestal Brasileiro (Lei nº 12.651/2012), sancionado pela então presidenta Dilma Rousseff em 25 de maio de 2012, estabelece regras para a proteção e uso das florestas em propriedades privadas, estabelecendo diretrizes para Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais. Tudo bem, mas o que um código que salvaguarda florestas tem com a PEC do senador Bolsonaro?
No âmbito das Áreas de Preservação Permanentes, estão incluídos os manguezais e as restingas, que são ecossistemas típicos dos terrenos de Marinha. A ocupação e exploração dessas áreas para fins privados pode violar as disposições de proteção das APPs, previstas no Código Florestal.
No que concerne a Lei de Crimes Ambientais, nº 9.605/1998 sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 12 de fevereiro de 1998, sobre a criminalização de atos danosos ao meio ambiente. Ações que causem degradação ambiental, como a possível privatização e subsequente exploração inadequada de terrenos de Marinha, podem resultar em infrações penais conforme esta lei.
A legislação ambiental é vigorosa, pois tratemos, agora, da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei nº 6.938/1981, sancionada pelo último presidente do regime militar, João Figueiredo, em 31 de agosto de 1981. Sobre princípios de preservação e conservação, a lei lança diretrizes para a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental. Qualquer medida que ameace ecossistemas costeiros deve ser avaliada com base nesses princípios, e a privatização pode representar uma ameaça significativa.
As convenções internacionais, como a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), assinado em 05 de junho de 1992, ficando o Brasil comprometido a conservar a biodiversidade. A proteção de ecossistemas costeiros, como manguezais e praias, é essencial para cumprir esses compromissos.
BIODIVERSIDADE MARINHA EM RISCO?
Os impactos ambientais da privatização das praias são uma preocupação central para ambientalistas. As praias e terrenos de Marinha são ecossistemas sensíveis, que abrigam uma rica biodiversidade e desempenham funções ecológicas vitais, como a proteção contra a erosão costeira, a regulação do clima e o suporte a atividades pesqueiras.
A privatização pode levar à construção descontrolada e à degradação desses ambientes, prejudicando espécies nativas e ecossistemas inteiros. O acesso restrito a áreas antes públicas pode dificultar a realização de ações de monitoramento e conservação, além de comprometer a resiliência das comunidades costeiras frente às mudanças climáticas
Diversas organizações ambientais e políticos se posicionaram firmemente contra a PEC. A Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES) emitiu uma nota técnica destacando os riscos ambientais e sociais da privatização. Segundo a ABES, a medida pode resultar em um aumento da especulação imobiliária e na perda de áreas de lazer e turismo para a população.
Políticos de oposição também criticam a PEC, argumentando que ela beneficia interesses privados em detrimento do bem comum. A senadora Eliziane Gama (PSD-MA) afirmou que a proposta “é um retrocesso que coloca em risco o patrimônio natural e cultural do Brasil”. Ela enfatizou a importância de manter o acesso público e garantir a preservação ambiental como prioridades.
Ambientalistas e especialistas, como Adayse Bossolani secretária-executiva do Painel Brasileiro para o Futuro dos Oceanos (PainelMar), destacam que a ocupação dessas áreas para fins privados e turísticos pode comprometer ecossistemas delicados e resultar na elitização de espaços públicos. A proposta também é vista como um retrocesso em relação às políticas de gerenciamento costeiro e proteção ambiental que têm sido desenvolvidas nas últimas décadas.
A privatização das praias é um tema complexo que envolve questões legais, ambientais e sociais. A PEC de Flávio Bolsonaro está no centro de um debate acalorado que divide opiniões no Senado e na sociedade. Enquanto seus defensores argumentam que a medida pode trazer benefícios econômicos, os críticos alertam para os riscos de degradação ambiental e exclusão social.
Enquanto a Marinha do Brasil não se pronunciou especificamente sobre a PEC, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e outras entidades governamentais têm defendido a manutenção do controle público sobre os terrenos de Marinha, enfatizando seu papel na justiça socioambiental e na proteção dos ecossistemas marinhos.
PÔR DO SOL OU ALVORADA?
Sobre apoios políticos, o senador Flávio Bolsonaro pode ter respaldo até de senadores da base governista, especialmente dos parlamentares ligados ao setor imobiliário e turístico, que veem na privatização uma oportunidade para o desenvolvimento econômico e turístico das áreas costeiras.
A Câmara Municipal de Biguaçu, em Santa Catarina, emitiu uma moção de apoio à PEC, indicando um respaldo a nível local, especialmente em regiões com forte interesse imobiliário e turístico.
O senador Marcos Rogério (PL-RO) também se manifestou favorável à PEC, enfatizando que a proposta poderia impulsionar o desenvolvimento econômico das regiões costeiras ao permitir maior investimento privado. Durante as discussões na CCJ, Rogério apontou que “a medida poderia trazer benefícios significativos para as cidades e estados, ajudando a resolver problemas de ocupação irregular e promovendo uma melhor gestão dos recursos costeiros”.
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) também expressou apoio à PEC, embora com algumas ressalvas. A entidade argumenta que a transferência dos terrenos de Marinha pode aliviar encargos financeiros sobre os ocupantes e promover investimentos significativos em áreas necessitadas de atenção e manutenção.
Na Câmara dos Deputados, o deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS) foi relator de uma versão anterior da proposta e defendeu a PEC com o argumento de que “a transferência dos terrenos de Marinha para estados e municípios permitiria uma melhor gestão e utilização dessas áreas”. Ele destacou que a medida poderia incentivar investimentos e melhorar o uso dessas terras.
OPOSITORES COM FÔLEGO
Os opositores à PEC não vêm apenas do Congresso Nacional. O Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e o Partido dos Trabalhadores (PT) nadam na contramão do senador do PL. Senadores e deputados têm manifestado publicamente seu descontentamento, argumentando que a medida pode restringir o acesso público às praias e causar impactos ambientais significativos.
O senador Rogério Carvalho (PT-SE) tem se posicionado vorazmente contra a PEC. Ele foi o responsável por solicitar a realização de uma audiência pública para debater o tema na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado. Ele argumenta que “a proposta pode comprometer a proteção ambiental e o acesso público às praias”.
A deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), defensora dos direitos das comunidades tradicionais e indígenas, argumentou que a PEC pode prejudicar essas populações ao favorecer a especulação imobiliária e restringir o acesso às terras que elas habitam há gerações.
A Frente Parlamentar Ambientalista (GT-Mar) tem sido uma voz ativa contra a PEC, destacando os riscos ambientais e a importância de manter os terrenos de Marinha como bens públicos. Eles alertam que a privatização pode levar à degradação dos ecossistemas e ao aumento da vulnerabilidade das zonas costeiras.
A PEC VAI DAR PRAIA?
A aprovação da Proposta de Emenda Constitucional é incerta. A força da oposição e a mobilização social contra a proposta são significativas, mas o apoio dentro da base governista e os interesses econômicos poderosos que a favorecem também têm peso. A decisão final dependerá de como esses fatores se equilibrarão nas próximas etapas do processo legislativo.
A PEC 03/2022 continua a ser um tema de grande debate no Congresso Nacional, com defensores e opositores mobilizando-se para influenciar o resultado da votação. O apoio de figuras políticas influentes sugere que a proposta tem chances de avançar, mas a resistência significativa de diversos grupos indica que o processo será intensamente disputado.
Os apoiadores da PEC acreditam que a proposta pode regularizar ocupações existentes, reduzir a burocracia e os custos associados à manutenção dessas áreas por parte da União, e fomentar o desenvolvimento econômico através de investimentos privados. Eles defendem que a medida traria segurança jurídica para os atuais ocupantes e permitiria um melhor uso dos terrenos de Marinha.
A PEC 03/2022 divide opiniões, com apoio significativo de setores econômicos interessados no desenvolvimento imobiliário e turístico das áreas costeiras, mas enfrenta forte oposição de ambientalistas, juristas, políticos, comunidades tradicionais e especialistas em direito ambiental. A tramitação da proposta continua a ser acompanhada de perto por diversos setores da sociedade civil, que estão mobilizados para garantir que qualquer mudança no regime jurídico dos terrenos de Marinha considere os impactos ambientais e sociais.
A privatização sem salvaguardas adequadas pode resultar em violações legais e danos ambientais significativos. A proposta do senador Flávio Bolsonaro serve a múltiplos propósitos, desde a regularização fundiária e desenvolvimento econômico até a promoção de interesses privados. A aprovação ou rejeição da PEC dependerá de como esses diferentes interesses e preocupações serão equilibrados no debate legislativo.