Amapaenses tentam recomeçar em meio à tragédia no Rio Grande do Sul

Três personagens de um desastre colossal que atravessaram o Brasil para viver dignamente. Agora, é a sobrevivência que vem em primeiro plano. A busca pela resiliência destes amapaenses começou, mesmo diante cenários caóticos.
Isaac Fontana/EFE
Isaac Fontana/EFE

Vai ser impossível esquecer a catástrofe climática que devastou 471 dos 497 municípios (números de 29/05) do Rio Grande do Sul, inclusive a capital Porto Alegre. É um evento sui generis que voltou a acontecer após 83 anos, quando a capital sofreu com inundações em 1941, com 95 óbitos e mais de uma centena de desaparecidos. As chuvas devastadoras e impiedosas que atingiram o Rio Grande do Sul desde o final de abril, trouxeram um cenário de caos e desespero, não é para menos. 

Ronildo Souza demonstrando a situação da rua de sua casa, no bairro Humaitá, em Porto Alegre. Foto: Arquivo Pessoal

Amapaenses que escolheram migrar para o estado gaúcho com o intuito de melhorar a vida, como acontece com milhares de pessoas Brasil afora, ou perderam tudo, ou comparam o desastre climático com o apagão no Amapá, ocorrido em 2020, guardadas, em absoluto, as devidas comparações e níveis de gravidade. 

Ronildo Barbosa de Souza, 44, reside no bairro Humaitá, na Zona Norte de Porto Alegre, famoso pela localização da Arena do Grêmio, que também foi afetada pelas enchentes tendo o seu gramado totalmente alagado. O bairro foi um dos mais prejudicados pelas enchentes do Rio Guaíba. Todavia, no domingo, 28, a Defesa Civil do estado permitiu que os moradores, em algumas quadras, voltassem às suas residências, ao menos para avaliar o que sobrou.

Uma bomba de drenagem foi instalada no bairro, o que resultou na diminuição do nível das águas. Souza mora há nove anos em Porto Alegre junto com o filho de 17 anos. Após demasiado esforço, ele havia conseguido se estabilizar na capital. Até acontecer o desastre climático, Ronildo e o filho precisarão recomeçar.

Ruas viraram rios e pequenas embarcações viraram carros. Imagem cinematográfica. Foto: Max Peixoto/Estadão

“Todo o sacrifício de anos desapareceu em apenas 15 minutos”, relata Ronildo que ainda disse que perdeu o carro, a casa e “tudo o que conquistei. A água subiu tão rápido que não houve tempo para salvar nada“. Souza ainda descreveu o cenário estarrecedor de ter presenciado “muitos corpos boiando, crianças, idosos, animais. É uma cena que só quem está aqui consegue entender a dimensão, disse ao G1.

Em várias regiões do RS, o acesso só é possível via embarcações e a falta de água e alimentos tem levado a conflitos e saques, cenários semelhantes aos de distopia que inúmeras séries já retrataram. “Já vimos pessoas invadindo lojas atrás de comida, está faltando tudo. Há uma força-tarefa tentando ajudar, mas não conseguem chegar a todos os lugares. Tive que sair às pressas com meu filho porque a água subiu rápido demais”, explicou Ronildo.

Em meio a tanto desastre, um despertar de vida. Quem consegue, leva seus pets para acampamentos improvisados como este, em Porto Alegre. Ou há quem acolha um cão, um gato perdidos pela cidade. A maioria se perdeu de seus tutores. Foto: Isabelle Reiger/O Sul

A situação é tão desesperadora que ele considera enviar o filho de volta para o Amapá até que consiga reestruturar sua vida em Porto Alegre. “O que passa na TV não mostra nem metade do que estamos vivendo aqui. Peço que todos orem por nós, por todas as famílias afetadas. É um cenário de guerra, pessoas brigando por água e comida”, completou.

A história de Ronildo não é única. Luana Medeiros Pereira, de 25 anos, também vive um drama semelhante. Acadêmica de Engenharia de Minas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luana descreve a angústia que ela e sua família têm vivido em Porto Alegre. “A sensação é de impotência, algo que se compara ao apagão que vivemos em Macapá em 2020. Parece um filme de apocalipse zumbi”, avaliou.

Luana Pereira, uma das vítimas amapaenses, já tenta pelo menos imaginar como será o seu recomeço junto à família. “Do cenário de guerra” à resiliência. Foto: Arquivo Pessoal.

Residente no bairro Menino Deus, próximo ao Lago Guaíba, Luana e sua família tiveram que evacuar a casa às pressas após o aviso da prefeitura. “Foi uma correria, muitas pessoas assustadas. Tiramos apenas o essencial de casa e fomos para a casa de parentes. Parecia um cenário de guerra”, relata.

Além da preocupação com a inundação, há ainda o temor constante de furtos nas casas e prédios abandonados. A estudante da UFRGS disse que não existia a mínima condição de permanecer em sua casa, pelo comprometimento da distribuição de água e de energia. “Já houve furtos nos prédios porque o pessoal saiu e o bairro está sem luz”, diz Luana.

Canoas, um dos municípios mais castigados pelo desastre climático. Muito da infraestrutura da cidade se foi, como um hospital. Muitas das vidas daí se foram… Foto: Amanda Perobelli/Reuters

A professora amapaense Mariana Oliveira, 32, mora em um dos municípios mais prejudicados pelas inundações, Canoas. O município, que fica na região metropolitana de Porto Alegre, ficou uma terra arrasada, disse Mariana, que mora há cinco anos em Canoas. “As pessoas estavam desnorteadas, tipo não querendo entender o que estava acontecendo. A água invadiu minha casa e consegui salvar o essencial. É uma situação desesperadora”, relatou. 

A professora ainda explicou que metade das escolas de Canoas, 41 das 83 existentes no município, foram diretamente afetadas. “Vai ser preciso mais do que a educação para fazer com que as crianças esqueçam minimamente desta tragédia. A saúde mental delas, e de todos do Rio Grande do Sul, terá que ser algo como prioridade de estado”, finalizou a professora.

É visível onde chegou o nível da enchente em Canoas, pela marca da água nas ambulâncias. O Hospital Pronto-Socorro da cidade, onde estão estacionadas, foi destruído. Uma cena dantesca. Foto: Bruno Santos/FolhaPress

NÚMEROS RECENTES E OFICIAIS 

Os números mais recentes da tragédia no Rio Grande do Sul são alarmantes. A Defesa Civil confirmou que mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas, com 169 mortes registradas até o momento. Aproximadamente 45 pessoas estão desaparecidas e mais de 47 mil são refugiados que tiveram que deixar suas casas. Os prejuízos financeiros estimados superam os R$ 559 milhões.

A capital, Porto Alegre, continua sofrendo com a cheia do Rio Guaíba, que atingiu níveis críticos, deixando 70% da população sem água. Cinco das seis estações de tratamento de água da cidade estão desligadas, agravando ainda mais a situação. A tragédia no Rio Grande do Sul é um lembrete doloroso da força da natureza e da fragilidade humana diante de desastres climáticos. A cooperação mútua é e será essencial para a reconstrução das vidas, das cidades. Para os amapaenses que estão no RS, como Ronildo, Luana e Mariana, a esperança por mais dias ensolarados reside na igual esperança de que recomeçarão. Enquanto isso, a solidariedade, a reciprocidade e, principalmente, a resiliência, são o norte dessa brava gente brasileira.

RELATÓRIO DEFESA CIVIL

Devido às fortes chuvas que causaram estragos em diversas cidades do Rio Grande do Sul, a Defesa Civil tem atuado para atender a população afetada e garantir a segurança das pessoas. Confira, abaixo, o último relatório, revelado hoje, 30, sobre as ações de resgate nas localidades atingidas. O relatório é divulgado diariamente, às 9h e 18h. 

INFORME DE AÇÕES DE RESGATE

– Municípios afetados: 473

– Pessoas em abrigos: 47.651

– Desalojados: 581.638

– Afetados: 2.347.664

– Feridos: 806

– Desaparecidos: 45

– Óbitos confirmados: 169

– Óbitos em investigação*: 0

– Pessoas resgatadas:** 77.729

– Animais resgatados: 12.527

– Efetivo: 28.153

– Viaturas: 4.046

– Aeronaves: 12

– Embarcações: 143

*Está sendo apurado se as mortes têm relação com os eventos meteorológicos.

**Apenas as pessoas resgatadas pelas forças de segurança do Estado

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